Não poucas vezes, as pálpebras rangem como portas entreabertas de dobradiças pouco ou nada oleadas.
A visão, que nos é dada pela natureza como mais uma garantia de sobrevivência, é igualmente motivo de uma cegueira que ultrapassa o olhar, que o poder da intenção substitui, e que nos define. É nas coisas invisíveis que os olhos se detêm, pois são os olhos os órgãos do onírico. O que nos acrescenta o próprio reflexo nos olhos de quem amamos? E não serão, tantas vezes, os olhos que nos cegam enquanto procuramos decifrar o mundo? As pálpebras de uma criança abrem muito aquando da novidade, enquanto que as pálpebras cansadas fecham mais vezes e mais devagar, meio emperradas. À noite fechamos as pálpebras para adormecer, adormecemos e continuamos a ver, em algum lugar secreto, por dentro, enquanto sonhamos. Fechar as pálpebras para dormir também nos é útil para seleccionar imagens; aquelas de que nos lembraremos para o dia seguinte e as que ficarão escondidas num recanto qualquer do cérebro, numa espécie de quarentena.
O Desenho tem sido, para mim, um registo que incorpora fisicamente o espanto que é ver, mas principalmente, uma tentativa de compreensão e apropriação do (in)visível.
No Tratado das Pálpebras ressurge um Eros que não quer ser visto, Hipnos desperta Eufrosina ao invés de a fazer adormecer, Psique não consegue dormir, Blimunda Sete-Luas coloca a venda para não ver ninguém por dentro, Electra procura a sua própria imagem num pai que não a vê e Dom Pedro contempla a sua (ida) Inês… É que, para quem vê (mesmo que não seja com os olhos), o véu mais denso é o dos afectos.
Sónia Godinho, 2017